A forma como fomos recebidos e carregados no início da vida não passa sem deixar marcas. Pelo contrário: ela se transforma no molde através do qual aprendemos a nos relacionar com os outros, com o mundo — e, sobretudo, conosco.
Existem dores que não se nomeiam com facilidade, mas que moldam silenciosamente o modo como passamos a existir. Abandono e rejeição são algumas dessas dores. Muitas vezes, são vividas tão cedo que não temos palavras, apenas sensações, impressões e emoções que se organizam dentro de nós como verdades sobre quem somos — e o quanto valemos.
No abandono, tentamos afetar o outro com nossa presença — com um choro, um pedido, um gesto de proximidade — e ele simplesmente vai embora. Sem explicação, sem resposta, sem um porquê. O corpo sente a ausência como ameaça. O coração aprende a desconfiar da permanência. E, aos poucos, começamos a acreditar que há algo de errado conosco. Afinal, se ele foi embora, é porque eu não fui suficiente para fazê-lo ficar.
Na rejeição, o outro até permanece — mas não se deixa afetar. Está fisicamente presente, mas emocionalmente ausente. Tentamos nos conectar, nos aproximar, e esbarramos em uma barreira invisível. Uma ausência que fere mesmo quando há presença. Com o tempo, aprendemos que nossos sentimentos não têm espaço. E então, começamos a acreditar que não valemos a pena. Afinal, se ele está aqui, mas não me vê, é porque eu não sou digno de ser visto.
Essas experiências deixam marcas profundas.
Carregamos, por dentro, a sensação de sermos sempre demais ou sempre de menos. Começamos a esperar, no presente, os mesmos gestos do passado. Passamos a nos relacionar tentando evitar o abandono, fugindo da rejeição, e sem perceber, repetimos os mesmos movimentos de dor. Sentimos que precisamos nos provar o tempo todo. Ou nos calamos, nos retraímos, vestimos a armadura de quem não precisa de ninguém.
Às vezes, essa dor se expressa de forma sutil: no comportamento “bonzinho”, sempre disponível, que diz “sim” quando quer dizer “não”, que cuida dos outros antes de cuidar de si — porque aprendeu, ainda muito cedo, que precisa agradar para não ser deixado. Outras vezes, ela se mostra na rigidez de quem se fecha, se afasta, se faz de forte — para não correr o risco de se machucar outra vez.
O abandono e a rejeição, quando não elaborados, criam formas disfuncionais de se relacionar. Padrões repetitivos, marcados por insegurança, baixa autoestima, medo do afeto e do vínculo. A vida vai seguindo como se estivéssemos, dia após dia, tentando consertar aquela ausência inicial. Tentando provar, enfim, que merecemos ser amados.
Mas essas dores não se curam sozinhas. Precisam de espaço, tempo e presença. Precisam ser sentidas, nomeadas, escutadas com gentileza — para que possam, pouco a pouco, encontrar outro lugar dentro de nós.
Essas dores não dizem sobre quem somos. Dizem sobre o que vivemos. E não precisam mais definir nossas relações.
A cura começa no vínculo.
Se foi no vínculo que nos ferimos, será também no vínculo que vamos nos curar. E o processo terapêutico é esse espaço de reconstrução: onde podemos tocar nas feridas sem sermos engolidos por elas. Onde aprendemos a escutar com o corpo, com a alma, com paciência e verdade. Um lugar onde se constrói, passo a passo, uma nova possibilidade de estar com o outro — e consigo — sem medo de desaparecer.
Tratar o abandono e a rejeição em terapia não é esquecer o que vivemos. É deixar de carregar a culpa que nunca foi nossa, é libertar nosso corpo da tensão de uma espera infinita, é criar dentro de nós um novo espaço de valor, cuidado e pertencimento.
A criança que fomos pode ter se sentido só. Mas ela não precisa mais seguir sozinha. Hoje, ela pode ser escutada. Pode ser cuidada. E pode, com o tempo, começar a confiar que existe, sim, um lugar onde o amor permanece.